terça-feira, fevereiro 27, 2007

A minha poesia é pouco apreciada apesar de muito apreciada.
Quero dizer que considero a abstenção negativa.
Vejamos agora a prosa.
É preciso coragem para copiar isto tudo mas vá lá.Um conto...

A 4ª visita

Revestido pelo uniforme oficial e ostentando todas as condecorações e faixas e ainda a máscara adequada à dignidade do meu cargo, achei-me numa rua larga, longa e fresca, como não há muitas para percorrer. No entanto não avançava melhor que um nadador através de um mar de pegajosos sargaços. E tudo porque tinha de fazer os costumados trajeitos à esquerda e à direita, para corresponder aos respeitosos cumprimentos dos que, desta maneira, se propunham, disfarsadamente, dificultar o meu avanço. O que me valeu foi que à medida que aumentava o números dos transeuntes, rareava o dos que me reconheciam.
Quando deixei de ter de saudá-los pude, enfim, distrair-me. Primeiramente distraí-me dos membros inferiores e o meu caminhar tornou-se logo mais fácil. A multidão ia também tomando posse do resto meu corpo à medida que engrossava à minha volta e, em breve, nem mesmo me era possível apurar se a cabeça me pertenceria.De facto os nossos pensamentos vibravam em uníssono e foi assim que antes de o ver já vira o lugar para onde nos dirigíamos.Era um enorme recinto que a costumada e anfitriática bancada circundava. A multidão, reparei, apontava para mim e ria mas era um riso alegre empurrando-me para a arena. Quando ali cheguei experimentei as minha habilidades -que outra coisa poderia eu fazer?- executando na prefeição três mortais a seguir que terminavam -e aí é que estava a novidade- na posição horizontal.
Dificilmente pude suportar a ofensiva dos aplausos de uma qualidade que eu -tão habituado a eles- desconhecia. Em vez da costumada ondulação sonora, o que chegou até mim foi uma vaga de verdadeira luz ; vede se não me espantaria !
Nela banhado continuei com o segundo número que consistia simplesmente em passar da posição horizontal à vertical -e sabeis como tinha disso experiência- mas de modo tal que parecesse puxado por um fio que me ligasse a cabeça a algum espactador que ocupasse exactamente a bancada superior do lado para onde olhavam o meus pés; ou seja, explicando melhor e com menos palavras, como os teimosos de feira.
O êxito desta simples operação não é para ser contado com palavras.
Apareceu então um patusco vestido como um palhaço, que me ofereceu um violino. Agradeci-lhe com o costumado pontapé e pus-me a tocar com todo o sentimento de que sou capaz -e creio já ter mostrado que sou capaz de muito sentimento- e a cantar.
Cantava:

Se eu me deixasse mostar
aos saltos no meio da rua
em vez de impor-me amarrado
no fundo não sei de quê
mas tão no fundo do fundo
que ninguém me ouve e vê;
Quem me olhasse e quem me visse
-o quem que amarra o que via-
talvez se risse.
Ma se o que eu tenho amarrado
no fundo não sei de quê,
deixasse que eu me mostrasse
em vez de ter-me amarrado
no fundo fundo do fundo
não sei de quê,
mas tão fundo e tão profundo
que ninguém me ouve e vê,
quem me visse e quem me olhasse
-o quem que amarra o que amara
o que veria-
talvez chorasse
etc., etc., etac.

Mas não consegui levar até ao fim a cantiguinha porque, apesar da suavidade da música e da não menor suavidade com que manejava o instrumento, não tardou que a corda mais grossa rebentasse com um estrondo que, assustando-me, me fez repetir num abrir e fechar de olhos, os dois números anteriores. O entusiasmo que tal cena despertou na assistência deve ter começado a preocupar seriamente as autoridades daquela terra, se é que tinham alguma noção dos seus deveres ; eu cá continuei a tocar sem qualquer perturbação pois as três cordas restantes eram mais do que suficientes. E foi talvez por isso que a segunda corda não tardou a seguir o exemplo da primeira, do que não deixei de apresentar desculpas ao público com gestos adequados; e o público retribuiu a minha delicadeza com aquelas rebrilhantes gargalhadas que caíam feitas luz na arena em que eu, livre, evoluía.
Procurei então acabar a minha área servindo-me das outra cordas e não me estava a sair mal -viam-se lágrimas em muitos olhos- quando a penútima corda faleceu. Desatei a chorar como um menino e todos choraram e riram comigo durante algum tempo. Restava-me precisamente, a corda mais miudinha. Acreditar-me-eis se vos disser que era agora que a música saía mais pura? Mais...mais...isso.
Esperava de um momento para o outro ficar também sem aquela frágil companheira mas o certo é que cheguei, sem novo acidente,ao fim da sinfonia.
O público não levou isto a bem e para o satisfazer ataquei uma marcha bem militar. Aguentei-me nela durante um andamento completo sob os assobios da assistência que, como é sabido, gosta de assobiar as marchas; Comecei a enraivecer-me e achando ali uma vassoura deitei fora o arco e continuei a marcha com ela. Embora não se notasse diferença na música, o público aplaudia agora gostosamente mas a minha raiva não parava de crescer; arrumei a vassoura e passei a tocar brandindo o violino de encontro às cordas do trapézio, às cadeira desocupadas da primeira fila e ás grades da jaula dos leões. Acabada a marcha, exibi desesperadamente o que restava do instrumento! -uma tábua miúda sobre a qual, bem esticada, se distinguia a intrépida cordazinha.
Infelizmente mal cheguei a aquecer-me à luz dos derradeiros aplausos porque logo caiu sobre mim. como um espesso nevoeiro, o mais terrível dos silêncios. Deixei então de distinguir as coisas á minha volta e pude enfim olhar-me ; reparei que com os movimentos descoordenados que fizera, me esfarrapara todo, perdera as minha faixas e condecorações, deixara cair a máscara.
Todos puderam, destarte, ver o logro em que haviam caído e não tardou que com quatro pontapés no lugar adequado, me encontrasse novamente na rua.
Empreendi então o difícil caminho do regresso e chegado à minha cidade com facilidade me refiz dos efeitos desta forçada, curta mas total, digamos assim, visita.
Não vos enganeis porém com o seu significado, nem vos esqueçais que foi, inteiramente, a obra do embuste.

Uf! gdec

do meu livro "O caminho"

3 comentários:

Ana M disse...

talvez seja preciso coragem para copiar isto tudo, mas não é preciso coragem alguma para lê-lo. é um gosto. vc escreve perfeitamente bem. fiquei aqui a pensar há quanto tempo escreve e em tudo o que já deve ter lido para conseguir se expressar tão bem. e pensei que talvez tenha eu muito chão a percorrer para me tornar assim. tão boa.

bisou

gdec - Geraldes de Carvalho disse...

Cara amiga Ana

V. envaidece-me o que é perigoso mesmo para um homem da minha idade.
Mas tem razão numa coisa : Li muito e continuo a ler muito.
É uma espécie de vício.
Como este blog não me dá a possibilidade de por música
arrangei outro.
Teria a maior honra-é a palavra exacta- com a sua visita.
O endereço é assim:
http://gdec2001.vox.com

saudações amistosas

Ana M disse...

linda música!, lindos os versos também! pode escrevê-lo?; algumas palavras foram um pouco difícies de entender, pela diferença da língua falada, entre o teu e o meu mesmo português.

bisou