27. Este privilégio criava-me, no entanto, alguns deveres que eu cumpria digamos, para não fugir à regra, gostosamente. Entre todos a minha predilecção ia para as visitas de cortesia. E não irei adiante sem me referir, muito secretamente, à que fiz ao secreto Instituto de Pesquisas Científicas:
A 1ª visita _ Esperavam-me todos no fundo da escadaria interminável. Avancei o pé direito e atirei-me suavemente no espaço; planei durante alguns segundos antes de atingir o pavimento atapetado com uma muito ligeira flexão que não alterou a dignidade do meu porte.
Rodearam-me imediatamente exprimindo por leves risos a alegria que lhes dava a visita da minha excepcional personalidade.
O director avançou um pouco e disse depois de uma saudação discreta:
_Recebemos com jubilosa surpresa a notícia da vossa visita. Ela é para nós motivo de grande felicidade que saberemos merecer, estai certo. Agradeço-vos em nome de todos e dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos.
Aplaudi com um curto movimento de cabeça; a comoção que me provocaram aquelas nobres palavras impediu-me de responder imediatamente. A referência aos filhos dos filhos deles intrigava-me no entanto.
Depois que consegui articular o meu discurso seguimos por um comprido corredor.
Reparei que íamos perdendo alguns companheiros absorvidos, ao que parecia, por vagos corredores abertos regularmente nas paredes laterais que levavam, conjecturei, aos aposentos interiores.
Fiquei só com o director que não cessava de dar-me explicações de tudo e de nada. Comecei a dar-lhe atenção quando entramos na sala principal. Dizia:
_É nossa convicção -hipótese nunca antes formulada- que a única diferença sensível entre nós e os animais é o uso da fala. Suspendeu-se para que eu aprovasse; aprovei.
_Propomo-nos eliminar essa diferença e contribuir para o progresso da humanidade acrescentando-a, por assim dizer, com o imenso potencial daqueles a quem chamam irracionais. Sorriu sem ironia e suspendeu-se para que eu aprovasse ; aprovei.
_Temos aqui alguns exemplares de antropóides superiores de diferentes espécies. Apercebi-me vagamente deles de um lado e do outro da sala, subdividida em pequenos compartimentos envidraçados contendo, além de outros objectos menores, um leito e uma árvore bastante esquemáticos. Na verdade pareceram-me todos macacos vulgares embora, repito, apenas vagamente me tivesse apercebido deles. O director apontou-me um à direita que, sem ser o maior, era o mais visível - o único que eu via realmente. Explicou-me:
_ Este chama-se...Não percebi o nome e tive acanhamento de pedir-lhe que o repetisse
_É o nosso melhor aluno e já conseguimos que pronunciasse correctamente o nome dele. Há-de convir que não é um nome fácil de pronunciar; calculei que sim que não fosse e exprimi-lho com um gesto. Olhei para o macaco e surpreendi-lhe um rápido pestanejar que me era especialmente dirigido. O director, notando-o, retirou-se delicadamente para a sala próxima de onde provinha um ruído regular.
Aproximei-me. Aquele cujo nome não pude perceber, olhava em volta receosamente. Os seus lábios articulavam palavras que não compreendi imediatamente.
Dizia:
_ Salve-nos. Estamos presos e não nos deixam dizer uma palavra. Notando que o director se aproximava continuou:
_Recebemos com jubilosa surpresa a notícia da vossa visita. Ela é para nós motivo de grande felicidade que saberemos merecer, estai certo. Agradeço-vos em nome de todos e dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos...
Comoveram-me as suas últimas palavras mas fiquei intrigado com a referência aos filhos dos filhos deles. Presenteei-o com algumas palavras do meu discurso.
O director aproximou-se com um largo sorriso:
_ Jurava que esse malandro tem estado a dizer mal de nós e a pedir-lhe para o ajudar a sair daqui, disse. Faz isso com todos os visitantes mas gosto dele. Note que é o único de quem já conseguimos arrancar uma palavra; tenho de gostar dele.
Pensei que devia indignar-me e chamar à ordem aquele sorridente director mas como aquilo não era nada comigo e a minha intervenção podia ser interpretada como falta de urbanidade, calei-me e assenti com um sorriso.
Passamos à sala próxima; menor repleta de máquinas e instrumentos. De encontro a uma das paredes notei quatro animais sentados sobre as patas de trás, iguais, imóveis e atentos.. A forma característica do focinho, como uma rodela de limão, permitiu-me identificá-los sem surpresa.
Apurei o ouvido às explicações do director; mostrava-me uma complicada máquina ao centro:
É um electroencefalógrafo quase vulgar. Sabe que normalmente os eléctrodos são apertados de encontro à cabeça do paciente mas, como todos os tecidos, e especialmente o ósseo, são absorventes das ondas cerebrais, praticamos nos nossos hóspedes uma antiga operação que nos permite colocar os eléctrodos em contacto directo com o cérebro. Apontou para um recipiente contendo algumas calotes cranianas e interrompeu-se sorrindo. Pareceu-me que devia sorrir mas, antes que o conseguisse, continuou:
_ É pena que ainda não tenhamos encontrado maneira de nos servirmos correctamente desta maravilhosa máquina . Se anestesiamos o paciente não obtemos senão fracas emanações cerebrais, SE operamos sem anestesia obtemos um reacção demasiado viva.
_ Creio, porém, que estou em vias de encontrar a solução.
_ Nesta câmara, apontou-me, está um símio sem crânio em absoluta imobilidade alimentado artificialmente. Espero que a incisão operatória sare completamente e então poderei observá-lo ali. É muito difícil conseguir; morrem, observou. Não me foi difícil admiti-lo.
Entretanto os quatro animais que eu havia notado começaram a agitar-se tremendo e ronronando surdamente. Uma luz apareceu numa tela em frente que escureceu. Olhei e distingui perfeitamente, três letra luminosas: S.O.S...
Alarmei-me um pouco mas o director explicou tranquilamente:
_ Mais um terramoto ou qualquer outra grande catástrofe ; os nossos aparelhos são tão sensíveis que podem captar qualquer pedido de socorro mesmo que seja puramente mental, desde que seja feito, simultaneamente por um certo número de pessoas angustiadas... É pena quer não seja da nossa competência prestar qualquer ajuda, ajuntou tristemente.
A luminosidade das letras diminuía. _ Estão a morrer, disse; se os tivessem salvo as letras ter-se-iam apagado de uma só vez.
Ficamos a assistir. Quando a tela ficou vazia indiquei que acabara a minha visita. Atravessei a sala grande lançando um olhar de esguelha para ver se via aquele cujo nome não pude perceber; não o vi. Depressa chegamos ao corredor onde recuperamos os companheiros que saíam regularmente dos seus aposentos. Chegados junto da escadaria o director adiantou-se e disse:
_ Recebemos com jubilosa surpresa a notícia da vossa visita...,etc...,etc...
Respondi-lhe. Quando acabei estendeu-me a mão com um sorriso de cordialidade; apertei-lha a medo e não consegui retirá-la depois. O director olhava-me com um sorriso de cordialidade. Com a mão livre agarrei-me às escadas e arrastei-me por ali acima interminavelmente. O director seguia-me de rastos sorrido e todos sorrindo agarrados uns aos outros arrastavam-se atrás de mim.
Cheguei ao cimo ofegante. Num supremo esforço libertei-me do director empurrando-o com o pé.
Quando chegaram ao fundo levantaram-se prestos e acenaram-me amistosamente. Levantei-me e acenei-lhes do mesmo modo.
Do meu livro "O caminho"
domingo, maio 20, 2007
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1 comentário:
Que giro! O seu sentido do sem-sentido é apuradíssimo!
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