Nós sabemos, disse após um breve recolhimento, que a consciencialização dos deveres não deve apenas obedecer a um estímulo violento; por isso os outros aspectos da vida exterior são também aqui artificialmente reproduzidos nas secções aonde estão os presos menos perigosos . Andando, passámos junto de outros grupos de extractores de sal; grupos de cinco ou seis prisioneiros dirigidos por um guarda. Cada grupo trabalhava numa mina diferente. Os guardas revezavam-se frequentemente. A temperatura mantinha-se bastante elevada mas o ambiente era seco, muito saudável, dizia o director ; a sede enchia-me a barriga mas um terror muito primitivo, impedia-me de perguntar por água. Suponho que temia que não houvesse. O director disse: Creio que terá sede, como eu . A água é extremamente preciosa aqui. Importamo-la como tudo o mais -excepto o sal claro, sorriu - e o orçamento prevê uma verba muito limitada; temos de racioná-la rigorosamente aos prisioneiros. O nosso médico calcula para cada caso a dose mínima diária suficiente para que a desidratação não atinja o nível mortal dentro da duração provável da pena.
Mas venha daí beber qualquer coisa. Retomámos o nosso trenó e voltámos ao lugar das habitações. Bebeu e ofereceu-me uma bebida, preferi apenas água mas a minha garrafa secou antes de poder levá-la à boca. Ninguém reparou. Fomos depois visitar outra secção. Esta é a dos "pedreiros" disse-me; os grandes blocos de sal extraídos são aqui reduzidos a pedaços cada vez mais pequenos até, que por último, o sal fica reduzido a pó. Nesta secção trabalham, além dos que sobem da secção anterior -actualmente sete ao todo - os réus de culpas menos graves : Difamadores, caluniadores, autores de crimes passionais açambarcadores, os que se apropriam da propriedade pública, alguns homicidas etc. Possuem também o seu transistorzinho para ouvir a emissão mas os estímulos são aqui de natureza mais subtil : Insuficiência alimentar -a emissão cessa na hora da refeição - a sede, a incerteza quanto á duração da pena, supressão das actividades sexuais, o isolamento -só podem falar nas horas da refeição - etc. Não sofrem castigo corporal excepto se violarem algum dos nossos rigorosos preceitos regulamentares. Compreendi que isso se dava muitas vezes porque os guardas se apresentavam munidos do seu inseparável chicote.
Nesta secção ainda são mais os que se perdem do que os se salvam. A loucura arrebata-nos a maior parte, mas temos de pagar algum preço pela eficácia do aparelhozinho, afirmou carinhosamente.
Esta secção é também a encarregada do carregamento dos navios.
Caminhando sempre, havíamos chegado à secção de empacotamento instalada à superfície.
A secção de empacotamento é a nossa privilegiada. Nela se encontram os casos menos graves de deformação da personalidade, além dos que sobem das outras secções —e note que subir, aqui, não é uma mera imagem -. São quase todos condenados por violência; uma grande parte deles homicidas; admiramos muito a coragem e costumamos dizer que desta massa é que se fazem os heróis, disse sorrindo. Trata-se apenas de canalizar-lhes o carácter no sentido de os tornar bons seguidores, e às vezes até guardiães, dos nossos sagrados princípios cívicos e morais. Note que desta secção têm saído quase todos os nossos guardas que, afirmo-o sem vaidade -disse orgulhosamente - são cidadãos exemplares. Na verdade os seus actos criminosos - referia-se novamente aos presos da secção de empacotamento como me fez saber indicando-os - só o foram pela circunstância fortuita de não serem dirigidos às pessoas adequadas, não sei se me faço entender...duvidou.
Todos os presos desta secção são recuperáveis mas alguns não resistem ao tratamento. Usam apenas o aparelho de dia e podem tirá-lo uma hora antes, durante, e até uma hora depois da refeição. Quanto aos estímulos, são de natureza puramente psíquica e bastante elaborados, do género injustiça e frustração. Posso afirmar-lhe que esta sorte de estímulos é a mais apta a provocar, quando estiverem lá fora, a salutar consciencialização dos ensinamentos que lhes ministramos. Temos um psicólogo especialmente encarregado desta tarefa. É especialista em distribuição arbitrária de recompensas e castigos, protecção dissimulada mas patente aos menos aptos, promessas sempre adiadas de melhoria da situação para os melhores e sabe como ninguém distribuir uma humilhação — a humilhação mais adequada a cada caso — no momento mais oportuno. É o chefe desta secção e o subdirector da cadeia; lamento não poder apresentar-lho mas foi ao continente escolher material para o seu laboratório; é um precioso colaborador, concluiu.
Voltámos ao nosso trenó. Tivemos necessidade de procurar os presos para os aparelhar. Encontrámo-los pastando descuidadamente pelas redondezas. Percebi que dois deles haviam adormecido, unidos numa cópula que o director desfez com uma chicotada complacente.
Levaram-nos a bom trote para junto das habitações. Quando estávamos a chegar o director disse apologeticamente : São tão bons que só lhes falta relinchar ! Disse isto e desapareceu sem qualquer explicação deixando-me o chicote. Continuei em direcção ao porto com os olhos fitos num sol que antes de falecer de todo, vomitava sangue sobre o mar. Estava pálido... pálido.
O preso que trotava mais perto de mim disse a meter conversa : Não te deves esquecer de nos chicotear ! Chicoteei-os e eles relincharam de contentes e em uníssono. Relinchavam: «Ele diz que só nos falta relinchar".
Chegamos ao porto. O meu navio ainda lá estava. Parecia entediado depois de uma tão longa espera mas animou-se só de me ver. Encontrei todos os da minha comitiva prontos para o embarque. A comoção própria dos reencontros e das partidas apanhou-me desprevenido de modo que mal consegui articular o meu discurso dirigido a todos os habitantes da ilha deserta que com o meu amigo, o director, à frente, ali estavam para se despedir.
À última hora apareceu por ali, porventura à procura de algum preso que se evadira, o guarda meu conhecido. Dirigi-lhe um sorriso mas percebi que não me reconhecera. Volteava engenhosamente no ar o seu chicote e, como via mal, o porto ficou deserto no mesmo instante. Corri para o navio; também ele parecia não se sentir seguro e começou a afastar-se com a lentidão que lhe é própria. Mas via-se que estava ansioso por me ajudar porque me lançou uma escada pela borda da proa na qual fiquei agarrado suspenso sobre o abismo que já o separava do cais. Consegui acomodar-me melhor sobre ela enquanto o navio, rodando sobre si, se apressava a caminho do continente. Sentia-me demasiado enjoado para sair dali. Durante a viagem o sol resistiu ainda muito tempo vomitando sangue sobre mim enquanto eu vomitava sobre o mar...
Fim
do meu livro "O caminho"
domingo, março 11, 2007
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