sexta-feira, março 09, 2007

continuação

Vamos vê-los trabalhar, disse; temos agora cerca de oitocentos; setecentos e oitenta e três para ser preciso, era o número hoje de madrugada. Estão sempre a chegar mas a mortalidade também é elevada e alguns sempre acabam por sair depois de completamente recuperados. Saiba que esta prisão é a única que pode orgulhar-se de fazer recuperações perfeitas dada a feliz aplicação da aliás impropriamente chamada lei das medidas de segurança. Esta lei permite-nos manter o prisioneiro até que seja considerado como de personalidade impecável.
Mas não se trata das medidas de segurança da velha teoria da prevenção, que está ultrapassada. São antes verdadeiras penas aplicadas à culpa dos criminosos pela inadequada formação da sua personalidade, ou nos casos de deformação hereditária (como também nos devidos a causas exógenas) à culpa pela negligência na correcção indispensável; e peço para notar, notou, que só a sua natureza de verdadeiras penas nos permite usar sobre os criminosos os nossos eficientes meios de correcção. Quero ainda salientar, salientou, que obtemos assim uma graduação mais rigorosa da pena, pois quanto maior é a deformação ou culpa (devemos entender estas palavras como sinónimos) maior o período de recuperação.
Entretanto havíamos chegado junto de um pequeno grupo de prisioneiros que acorrentados uns aos outros, como é costume, trabalhavam sob a vigilância do guarda meu conhecido que me acenou um cumprimento. Brandia a intervalos regulares o seu chicote distribuindo correctivos com invulgar sentido de justiça entre todos os prisioneiros.
Estamos a assistir à extracção de sal, declamou o director com uma ponta de indisfarçável orgulho; ocupamos nesta actividade cerca de metade dos prisioneiros, os mais perigosos : desordeiros, todos os violadores dos direitos de propriedade, blasfemadores, abusadores da liberdade de imprensa, agitadores, pacifistas, antinacionalistas e outros intelectuais, poetas, filósofos e outros visionários, pretos e todas as demais castas inferiores, etc. Sabemos que são raros os recuperáveis neste grupo mas é mais uma razão para tentar recuperá-los com mais afinco. Quando, algum deles, consegue passar para outra actividade, é porque está no caminho do bem, concluiu com unção. E depois de uma pausa:
Embora o método que aqui usamos pareça à primeira vista muito primitivo, posso afirmar-lhe que não é nada disso, é "estritamente científico" segundo reza o nosso regulamento. Aplicamos pura e simplesmente a conhecida pedagogia baseada nos reflexos condicionados. Se bem atentar no ouvido direito de cada prisioneiro há um pequeno objecto que é um receptor transistorizado contruído para captar apenas a nossa estação emissora que transmite continuamente, excepto no pequeno intervalo da refeição, os preceitos indispensáveis a uma boa formação cívica e moral : Admiração pelos superiores, obediência às autoridades, respeito pela propriedade, crença religiosa, etc., condensados em fórmulas simples e directas do género: "Deves crer que F. é o melhor e mais inteligente dos dirigentes, deves estar-lhe grato e admirá-lo". É absolutamente proibido retirar o receptor do ouvido, seja em que circunstância for, e a destruição dele é punida com a morte ( já tivemos de aplicá-la mais do que uma vez, digo-o entre parêntesis) disse. Esta fase da recuperação considera-se completa quando a um desagradável estímulo físico exterior se suceda automaticamente a emersão à superfície da consciência dos princípios morais fundamentais -desculpe a rima- que regem a nossa sociedade, pela ordem do ensinamento que é também a da importância. Infelizmente a demência completa sobrevém muitas vezes antes de termos conseguido resultados satisfatórios e para a demência a pena é a morte -culpa na formação da personalidade, lembrou-me- mas algumas vezes esta antecede aquela.

do meu livro "O caminho"

continua...

1 comentário:

Manuel Souto Pico disse...

Parabéns, gostei da sua prosa ;) Siga enviando partes do seu livro O Caminho.