domingo, agosto 19, 2007

Pequena parte do meu novo romance : SORTILETEJO

Por essa altura o Mário costumava sonhar muito e recordava muito bem os sonhos que tinha, talvez porque tinha mau dormir e, assim, acordava muitas vezes logo depois de sonhar.
Eram sonhos bastante interessantes que ele gostava de recordar e que algumas, poucas, vezes contou aos amigos. Deixou porém de fazê-lo porque notava que eles não acreditavam que ele tivesse efectivamente sonhado com todos os pormenores de que se lembrava.
Recorda que uma das vezes um amigo comentou: Tens uma imaginação efectivamente prodigiosa, mas fê-lo com tal acento de admiração que o Mário não teve coragem de se zangar.
Deixou então de se interessar por esses sonhos, que por isso depressa esquecia e parecia-lhe mesmo que deixara de os sonhar.
Ultimamente, porém, os sonhos que deixara de ter transformaram-se pouco a pouco em pesadelos que na verdade se repetiam até à exaustão ainda que com ligeiras alterações...
Num deles antecipava o parto da Adélia . E havia duas coisas que o afligiam muito naquele sonho . Uma delas era que ele assistia ao parto dissimuladamente sem que a Adélia soubesse e desse por ele . A outra questão inquietante era que, por mais que tentasse, nunca conseguia ver a criança que nascia e ele dava-se a pensar, no meio do pesadelo, se ela seria realmente uma criança . Se não seria já um adulto, ou mesmo outra monstruosidade qualquer .
A Adélia, no sonho, parecia não sofrer nada com tudo aquilo. Ria-se mesmo. Umas risadas esganiçadas, a avaliar pelos esgares que fazia, o que não era nada dela. Pareciam de outra pessoa e, reparando bem, também ela não era ela, por vezes.
E este pesadelo nocturno transformava-se em pesadelo de dia pois não podia contá-lo a ninguém nem o esquecia porque quando isso estava prestes a acontecer voltava a sonhá-lo.
Outro pesadelo era bastante mais estranho porque não parecia ter nada a ver com as suas preocupações, no momento.
Via ele um homem que não reconhecia sabendo, embora, que era seu amigo, conduzindo um velho acorrentado que sabia ter sido condenado à morte. E ao mesmo tempo que sabia que o seu amigo – que, no entanto, não identificava - era obrigado, por dever...oficial, digamos assim, a conduzir aquele homem, não deixava de achar muito estranho que o fizesse pois sabia-o contrário a tal penalização.
Entretanto verificava-se uma altercação entre aquele par que ele contemplava a uma certa distância. Via então o seu amigo conduzir nervosamente o homem para o encostar a uma parede . Retira uma pistola do bolso e aproxima-lha agitadamente da têmpora. Não atira porém. Coloca-se ele próprio no muro, ao lado do homem acorrentado e encosta agora a pistola à sua própria têmpora.
O Mário não ouve o tiro – todos estes pesadelos são completamente mudos - nem vê cair o seu amigo porque acorda sufocado de angústia.

GERALDES DE CARVALHO

3 comentários:

Alê Quites disse...

Muito bom!

Limeira disse...

Geraldes. Gostei muito deste trecho de romance. Parece-me bem kafkiano. Um abraço, saludos & Parabéns. Maria José Limeira.

Senén disse...

Realmente tipo Kafka. Estimado amigo, alejese de los destilados de baja alcurnia.
No dude en aceptar los destilados escoceses de marca.
Saludos
Senén