sábado, julho 27, 2019

Menina traquina



Menina traquina


Ela me fasciname ensina a olhar.

E eu fico parado
meio aparvalhado
apenas
de vê-la passar.

Se eu fosse
fosse eu
aquela menina 
que brinca traquina
e me ensina a olhar...

Talvez não tivesse 
esta voz de dentro
que me enlouquesse
e não sabe parar.

Para minha voz
descansa meu peito
olha, apenas olha
como te ensinaram.

Faz do mesmo geito
daquela menina
menina traquina.

Geraldes de Carvalho
de " Catatadupa de vozes"
Évora 2017


sábado, novembro 29, 2014

estou cansado
ou
o ser nauseabundo

Ó como estou cansado
de vos cumprimentar
a um a outro lado.

Você está bem ? 
meu bem
meu mal
meu isto, meu aquilo ?

E você também?

Não estou bem, não senhor
tenho aqui um remorso
tenho aqui uma dor
apetece-me gritar

Não pode 
fica mal
Vão dizer é maluco.
ou que lhe falta o ar.

Mas porra, apetece-me .

-Parece um animal...-

Não posso mais olhar
pra vossa cara não
Vejo nela o sinal
um sinal
de cabrão.

Eu não disse(?), está doido
Já não sabe o que diz
Tem o ranho na boca
Fala pelo nariz.

Tirem de mim as mãos
deixem-me respirar
minha vida se esvai .
Se estou doido é por vós
filhos da vossa mãe
mas não do vosso pai .

Geraldes de Carvalho

PS. - E assim
insultando o mundo
morreu
o ser nauseabundo.






Como Cristo foi promovido - estória para crianças- 

O homem que era Jesus Cristo também errou
por que senão não seria homem.
Não seria homem
verdadeiramente .

E conta a estória que José
se apercebeu do que Jesus fizera
-ou desfizera fazendo-
e
irritando-se 
ligeiramente
lhe deu um pequeno
safanão .

Mas porque era 
José
bom
e amava a Cristo como um pai
ainda que suspeitasse que
no futuro
não seria assim considerado
ficou 
José 
remordendo-se 
de desgosto e arrependimento
considerando que devido à sua pouca idade
era normal 
ou era desculpável
o que Jesus fizera.

Então Cristo 
notando o abatimento de seu pai
chegou-se a ele de mansinho e disse :
Não te amofines homem
porque apenas cumpriste
o teu dever.

Por isso
o pai eterno
considerando 
o que Jesus fizera
o promoveu a Deus
-porque deus já ele era
por ser menino-
meditando que é Tal
o que é capaz de bendizer
quem o corrige .

Geraldes de Carvalho

quinta-feira, setembro 11, 2014



Má !...

Não haverá sentidos
mas castigos
para as palavras
sem juízo
que não vêem
aonde põem os pés !

Ficas avisada ,
minha querida
palavra má.

Má !

                   Geraldes de Carvalho

sexta-feira, maio 16, 2014

48- Vem, ó vem .

Vem, vem, vem
minha senhora poesia.
Vem
estou aqui
nu
pronto para te receber
e celebrar contigo
os secretos mistérios
da desencarnação.
Vem, vem
minha querida
ninguém perturbará
os sonhos
que são nossos
e temos de sonhar.
Vem vem
dormir
nos meus braços
ouvir o doce acalanto
que desde o princípio do tempo
te estou a sussurrar,
no vento.
Vem, vem, vem
meu amor
meu coração te espera
com doces palpitações
que se ouvem
em todo o universo,
cá perto
lá longe.
Quero sentir-te
aqui
junto do peito
aninhada
como se fosses
a lobazinha
que é minha
porque me está destinada.
Vem e toma-me
sou teu
já não sou meu
já não sou eu.

Geraldes de Carvalho

terça-feira, maio 06, 2014


45- Espasmo ôntico

Como um tal
meu pensamento tremula
quase desmaia
e eu aqui sem saber.
Óh, quem dera não o ter!

Melhor fora
ser saudável
e gostar do futebol
ir às festas e bailar
que, como um louco, pensar
em coisas que nem eu sei
me deixam assim parado
como doente espasmado
a pensar se existo ou não
se sou homem se sou cão.


Cão eu deveria ser
gosto dos ossos que tem 
meu pensamento
meus dentes são fortes são
cadelinhas são meu fito...
Cadelinhas são meu rito.

Podem os homens morrer
nas guerras que organizam
e as crianças padecer
cheias de fome nas pontes
-quando há rio...-
Eu cá por mim não me importo
enquanto estou a sofrer
enquanto estou a gozar
como um bônzio
neste meu espasmo ôntico.

Que merda, ein!

Geraldes de Carvalho

sábado, abril 12, 2014

Antigamente

Antigamente 

Antigamente é que eu pensava claro. 
As palavras acorriam à minha mente 
sem nelas parecer eu ter pensado 
pegavam as ideias que ali estavam 
à sua disposição 
compunham um poema uma canção 
e nada parecia complicado . 

Mas agora, senhores 
as palavras se embrulham 
manejam um sentido que eu não quero 
e se me impõem como um patrão bruto 
um senhor fero 
que não se importa de voltar atrás 
desdizendo o que disse 
deixando-me devoluto de razão 
envergonhado como um mau rapaz . 

E então se ri 
este ser indiscreto 
que às vezes pareço eu 
e outras vezes sou ainda eu 
mas indirecto. 

Geraldes de Carvalho

sexta-feira, abril 04, 2014


Que risa...

Que riso homem 
-que risa, hombre-

Não retrocedas os lábios
velho.
Anda mas sempre em frente
com o sorriso na boca
toda.
Ou
melhor
antes um riso franco
que nos revele quem és
que é para isso que serve o riso.
O riso que torna humana
a tua face .
O riso que trasborda
da tua face .
O riso que trasborda
de ti.


Ri que o mundo está
cheio de desrazões para rir.

Ele é a seriedade dos doutos, loucos
malucos.
Ele é a imbecilidade dos que mandam
desmandam e se riem também
com risos ocos.
Ele é a nossa seriedade
perante
tanta
imbecilidade .
Ou
talvez
a nossa imbecilidade
perante
tanta
seriedade.

Ri.
Ri tanto
até que fiques sério
para sempre
de tanto rir.

 Geraldes de Carvalho

sábado, março 29, 2014


                                                                  Presunção


O Sol, a Chuva, o Vento
e eu ali 
no meio
como se fosse
o Deus primordial .

Geraldes de Carvalho

sábado, novembro 10, 2007

Eu sou,ai eu sou...(IV)



Eu sou um navio
navegando frio
só e sombrio,
neste mar, vazio
de estio e de amor.


Navego pouco
mas navego louco
mas navego mouco
ao gemido rouco
da raiva e da dor.
Navego certo
no mar inconcreto
fechado, secreto,
navego insurrecto
sem som nem vapor,
nem leme, nem vela
nem rumo, nem estrela
nem desejo dela,
navegando por...


Por ondas
por mares
por ventos
por ares
por montes altares
por vales de azares
voo, vou e sou.


Se eu fosse
se eu fosse,
se ser eu quisesse
se ser eu pudesse,
emissor remoto
de astrónomo louco,
estrela quasar,
navio do ar
ancorado em porto
que eu só conhecesse...

Geraldes de Carvalho

Do meu livrro Novos e Velhos Cantos -Évora 2006

terça-feira, novembro 06, 2007

Adolescente

Ah louca, ah louca...
Há uma voz que desce
que desce 
e que traz,
os limbos, os céus,
os gestos que faz.


Ah louca, ah louca...
Rosada, a menina
das tranças, diz:
Tenho os meus olhos no céu
na terra ponho o nariz.


Ah louca, ah louca...
Tens a vida
atrás de ti
não te mexas,
não te voltes,
a vida é um passarinho
não te mexas,
tens a vida atrás de ti
descuidada...
Agora, agora devagarinho
não te mexas...
desastrada !.


Ah louca, ah louca...
Toma lá 
dou-te um beijinho
mas não digas 
a ninguém
que os meus beijos,
meu carinho,
são só para ti...


E há deuses 
que vêm
descendo 
assim como as folhas,
assim, assim,
bailando,
trá-lá-lá, 
lá-lá , lá-lá ,
e chegando à terra dizem:
Eu cá, sou o deus tal,
e vão-se embora 
subindo
bailando
assim como as folhas
trá-lá -lá,
lá-lá, lá -lá.

Geraldes de Carvalho
De Novos e Velhos Cantos. Évora 2006


Aqui está a minha. E a tua?
gdec

Dos anjos...poema-prosa . Incompleto

Dos anjos e dos demónios

O que mais invejo nos anjos é a possibilidade de se tornarem demónios. Qual há aí, de entre vós, que não cobice o papel que os deuses deram a Mefistófeles? Pois não somos todos uma tentativa de demónio a fugir perpetuamente de uma cruz? Mas ela acaba sempre por nos apanhar, porque os seus braços só terminam no Infinito, e por isso o nosso fracasso como demónios. Vingamos mais como deuses, à maneira de Cristo, deixando-nos crucificar. Mas ainda aí nos apanha a nossa insuficiência, porque não somos capazes de morrer antes da hora nona, e vêem os soldados para nos esmigalhar os ossos!... Então lhes mandamos um pontapé pelos queixos e lá se vai o «perdoa-lhes ... »
Ressuscitar é o que custa menos. Todos os dias ressuscitamos de nós mesmos e parece que não nos admiramos pelo facto. E quem é que nos mata? - És tu. Sim, és tu. Quem te mandou a ti obrigar-me a olhar para o alto? Quem nos mostra o céu é sempre um assassino. O ferro entra-nos pelos olhos ... da alma e o ferro tem a forma de uma cruz. E porquê uma cruz? Só a cruz é tudo ...

Geraldes de Carvalho
de Sombras de Alma -Coimbra 1955

sexta-feira, novembro 02, 2007

Diz-me lá -em construção mas, se eu morrer, vale mesmo assim.-

Tu Platão, meu amigo
meu companheiro
velho
que vislumbraste o mundo
cheio de sombras 
do fundo da caverna
-e aqui ainda estás-
tu que trataste Dionísio como teu discípulo
mas era o teu captor,
tu que três vezes, três,
insististe em educar Siracusa
e das três vezes falhaste
permanecendo sempre
o educador
-sei bem que tu pensavas
em nós, quando dormias-
diz-me lá, meu sábio
amigo,
o que é que pensarias
se não tivesses visto sombras,
nem nada 
como eu(não) vejo.

Porque quero saber
o que pensar.


Geraldes de Carvalho
de 30 poemas de muito amor e alguma trivialidade

quarta-feira, outubro 31, 2007

Eu sou ai eu sou -VI-

Eu sou ai eu sou
um grito
perdido
na noite passada
na noite fechada

Ressoo e ecoo
Redobro o torpor
Desta noite antiga
em que eu não sou nada
Apenas um grito
na noite perdido
na noite perdida

Abro a boca
os olhos;
vou
por aqui - por onde? -
aclarando a voz
A noite está louca
pois só me responde 
um silêncio atroz


Não me reconheces?
Estou tão mudado?
Como é isso assim
se apenas sou nado?

Queres que me cale?
Mas como poder?
Estou vivo, não ves?.

O que eu digo é nada?
Bem sei, bem no sei
mas faz-te pequena
e assim me ouvirás.

Minha noite amiga
noite em que eu nasci
olha para mim.
Por que eu não sou eu
sou montes, montanhas
alcateias, bandos,
e bandos e bandos
que gritam assim...

Se eu fosse
se eu fosse
se ser eu pudesse
se ser eu quisesse
uma voz mansinha
que dissesse
à noite
à noite pequena
à noite, à noitinha
o que ela adivinha.
E se ela me ouvisse
e me acalentasse
como eu desejasse...

Se ser eu pudesse
se ser eu quisesse...

Geraldes de Carvalho

de NOVOS E VELHOS CANTOS Évora 2005

terça-feira, outubro 30, 2007


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Apaixonei-me pela tua fronte larga

Amo-te nas manhãs do meu maio generoso
e nas ruas brancas do teu silêncio. 
E a tua fronte larga, é o meu infinito 
é meu horizonte. 
Nela semeio as flores 
da minha fantasia 
e a poesia que colho 
és tu a desfolhar-se. 
Amo-te nas manhãs que não existem fora de ti
nas manhãs que constróis com as tuas auroras. 
Levou-me deus ao paraíso e disse: 
Escolhe. 
Este campo será o meu jardim! 
E foi. 
Anda ver a tua fronte semeada.
Tenho as flores aladas da maravilha céu 
e as flores prateadas da maravilha mar.
Escolhe o que quiseres. 
Enche de rosas rubras os teus cabelos negros
e de camélias brancas os teus rosados seios, 
tece grinaldas-sonho em forma de vestido
faz do teu corpo todo um arraial florido. 
E havemos de cantar ao deus da primavera 
«É bom viver e amar» 
que me ensinou a nossa estrela. 
E será sempre maio. 
e serás sempre bela.
E o teu cabelo preto 
há-de pedir um raio à nossa estrela . 
E será sempre maio 
e serás sempre bela. 
E o teu cabelo ... preto 
há~de pedir outro raio à nossa estrela ... 
E será sempre maio 
E serás sempre bela. 
E o teu cabelo ... lindo 
há-de pedir mais um raio à nossa estrela . 
E será sempre maio 
E serás sempre bela. 
Meu deus, que mimoso encanto 
as rosas vermelhas 
no cabelo branco! 
E será sempre maio 
e serás sempre bela! 

Geraldes de Carvalho
de Sombras de Alma - Coimbra 1955

sábado, outubro 27, 2007

Cantiga de amigo -que já foi americana -quando eu tinha medo da PIDE

Mãe, meu amigo vai
lá para as bandas do mar
lá para as bandas de lá
e nem me deixam chorar
e nem me deixam chorar...

Lá para as bandas de lá
do outro lado do mar
vestido de verde e terra
e a terra fica a chorar
e a terra fica a chorar...

Vestido de verde e terra
nem sabe o que vai fazer
vestido de verde e terra
vai matar para não morrer
vai matar para não morrer...

Vestida de verde e terra
quem me dera acompanhá-lo
escondida no seu peito
e antes que mate, matá-lo
e antes que mate matá-lo
e antes que mate, matá-lo...

Geraldes de Carvalho

de 28 ou 29 poemas de muito amor e etc.
escrito em 1969 na cidade que, então, se chamava Lourenço Marques -agora chama-se Maputo-.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Eu chovo sobre ti...

Eu chovo sobre ti minhas angústias
meus desalentos minhas desventuras.

O teu coração é grande
e tudo nele se desfaz
como se fosse neve no verão
um pecado mortal no paraíso
ou no inferno, uma boa acção.

Meu amor, minha querida
como consegues ser assim
para além dos meus sonhos,
meus anseios ?
Como consigo imaginar-te tanto
que não és o que és ?

Dentro de mim estás
e, como do oceano Vénus, nasces 
tão pura tão etérea no primeiro momento
que se assim permanecesses morrerias
porque eu contigo estou
feito deste mortal egoísmo
de que sou .

Por isso amor, vivamos 
nossa humanidade pequenina
e soframos as angústias,
os desalentos e as desventuras
mas vivamos.

Geraldes de Carvalho
de 27 poemas de muito amor e também muita trivialidade

Assim...assim...(4)

E hoje?...


Hoje te vi
como te vejo sempre
desde que existe o tempo
desde que eu existi
desde os tempos do principio
desde o princípio dos tempos
porque tu és
em mim
e eu sou em ti
olhos nos olhos
assim, assim
assim, assim...


Geraldes de Carvalho

de 27 ou 28 poemas de muito amor...

domingo, outubro 14, 2007

Olhos de mar alto

A minha ciência ou filosofia, ou o que raio seja, deve ter-vos enfastiado. A mim também.
Para V. compensar vai aí um poema dos meus tempos de quase criança.
Espero que com ele se sintam crianças como eu e todos iremos para o céu..
Vai tal como o escrevi . Apenas lhe retirei quase toda a pontuação porque eu abusava muito dela, naquela altura.

Olhos de mar alto


Trazes nos olhos o chorar dos mundos
dois mares ansiosos de ser céu. 
Meus olhos são mil mundos de tormentos
e o teu olhar, já não cabe no meu. 
Eu já não sou aquele cujos ventos 
faziam tempestades nos teus olhos; 
estou reduzido à condição de escolhos
batidos pelas ondas ansiosas 
de vogar pelos céus 
abraçar novamente as nebulosas 
e conversar um pouco sobre deus. 
Quem me dera ser gota dessa onda,
aprender com teus olhos a voar 
e a perguntar belezas que ninguém responda.

***

Teus olhos são dois braços de uma cruz
e nesse gesto largo que fizeste 
para abarcar o mundo, 
o mundo contiveste .

Geraldes de Carvalho 

do meu livro "sombras de alma" Coimbra 1955

quarta-feira, outubro 10, 2007

Ciencia -em termos latos-

Demos agora lugar à ciência -em termos latos-.
Para entender o texto não é preciso saber nada de Direito. É preciso saber um pouco de filosofia mas isso toda a gente sabe, apesar do nome pomposo que tem . É que a filosofia é apenas uma reflexão sobre a arte de viver.



PREFÁCIO DE INTENÇÃO EPISTEMOLóGICA

1. _ A Ciência Jurídica: Proposta de noção. Seu objecto:
O direito.

A Ciência Jurídica é o conjunto sistematizado de estudos e conhecimentos acerca da específica estrutura social (1) cuja função é a tutela de determinados tipos de interesses humanos através da coerção organizada e exercida por um poder de classe que, nos limites em que se acha constituído, age como soberano (2).
Na base da estrutura jurídica situam-se as relações
económicas-sociais. No topo, um sistema de concepções -uma super-estrutura ideológica - que são a transposição da matéria social para o nível da consciência social. Esta ideologia, como qualquer outra, tende a devolver-se à sociedade material realizando, na história, a sua concepção da realidade.
Os interesses humanos - objectos da tutela - estão



(1) A estrutura social em causa é o Direito.
(2) O poder de classe de que falo é o Estado.
(3) A realização de um juízo de ser é, em contrapartida, mediada não por uma
norma mas sim por uma regra, um comando hipotético ou seja um preceito de arte.





presentes no todo da estrutura jurídica; na base, como matéria das relações sociais e na super-estrutura, como ideia, sob a forma de juízos de valor.
O juízo de valor, enquanto componente de uma ideologia, não é, cabe adverti-lo, o simples conhecimento do interesse na sua existência objectiva, mas a assumpção do interesse, a sua subjectivação. Daí que só os interesses assumidos pela entidade tuteladora - a classe reinante - possam ser objecto da tutela. Ideologia é pois igual a consciência de classe.
A objectivação da ideologia - a sua devolução à realidade material- porque realização de juízos de valor, é, necessariamente, normativa (3).
A norma, nexo entre a ideologia jurídica e a sua base material, mediadora da acção que a super-estrutura exerce na realidade empírica, compartilha assim o seu modo de ser ideológico com o da matéria social a que se refere: é um ser cultural. Torna-se por isso objecto privilegiado da ciência jurídica.
Na verdade a norma, sendo, por um lado, valor mas objectivado - comando - permite tomá-lo -ao valor- como objecto de conhecimento e, sendo, por outro lado, matéria mas referida, nominada, ou seja num primeiro grau de conhecimento, permite um conhecimento teorético ou de segunda - ou ulterior - intenção.






2. - A Ciência Jurídica é possível em diversos planos de intenção e níveis de abstracção.
No plano da intenção devemos distinguir:

2.1. - Os estudos e conhecimentos que se ocupam de Direito como sendo um objecto específico que é necessário classificar dentro da ordem geral das realidades afins e em relação ao qual importa determinar a função que cumpre nos diversos contextos a que pode ser referido. Teremos assim, por exemplo: uma antropologia do Direito, uma história ou uma sociologia do Direito, etc.

2.2. - Os estudos que se propõem o Direito enquanto problema prático a resolver, ou seja, que se ocupam dos problemas suscitados pela «vida jurídica», pelo Direito no acto de se realizar. Neste plano de intenção o Direito não é propriamente o objecto do estudo mas um dado. O objecto será o caso - problema - jurídico, real ou hipotético, a resolver. Este é o plano dos juristas, o pensamento jurídico, um pensamento de Direito e não sobre o Direito. Resta saber se tal pensamento pode ser considerado uma ciência (da prática jurídica) ou se não é apenas um pensamento de intenção (método?) científica.

3. - No que respeita ao nível de abstracção que se propõe alcançar poderemos, talvez, considerar na ciência jurídica três planos fundamentais:

3.1. - O da análise exegética, lógico-dedutiva, através da qual apreendemos o que já é conhecimento, realidade mentada ou cultural; por ex.: o que comandam as normas ou qual o modelo formal de uma relação jurídica abstractamente nelas regulamentada.

3.2. - O da formulação dos conceitos através dos quais ordenamos um conjunto de fenómenos significantes, já nomeados, num sistema unitário de significações, sistema cuja coerência interna assim nos é dado compreender - é o nível das teorias.

3.3. - Finalmente poderemos considerar a formulação dos juízos - ou hipóteses - mais gerais e englobantes sobre o Direito, na base dos conhecimentos obtidos nos estudos jurídicos e sobre o jurídico nos seus diversos planos de intenção e níveis de abstracção e também a partir de uma posição sobre o sentido geral da vida e das sociedades humanas. É o nível filosófico.

4. - Do método em Geral.
A Ciência Jurídica é, na actualidade, um empreendimento colectivo. Os estudos aos diferentes níveis de intenção e abstracção só podem ser considerados como tarefas parcelares daquele mesmo empreendimento. Os resultados obtidos dependem da interacção dialéctica que entre tais estudos se estabelece. Assim por ex.: a conceitualização sistematizada a partir das normas, e mesmo a validade de tal forma de conhecer o Direito, é, desde o início, determinada pelo estatuto ontológico que o estudioso fixa ao direito - ideia objectivada (?) simples fenómeno empírico no acto de acontecer (?) realidade histórica plasmada em juízos de valor (?). Por outro lado a validade dos conceitos obtidos depende de se ter tomado em conta e se ter operado conjuntamente com os elementos funcionais que só a história e a sociologia podem fornecer. O pressupor da função é condição indispensável do conhecimento de uma estrutura a realizar-se, do movimento que é o modo de ser da sua existência real.
A interacção dialéctica de todas as formas e níveis de conhecimento de Direito e sobre o Direito, multiplica-se infinitamente pois é necessário não considerar a ciência jurídica isolada de todas as outras formas de conhecimento. Da mesma maneira se deve ver a relação entre a ciência jurídica com a prática que ela vai, por sua vez, modificar. E isto, quer essa prática seja a realização da ciência do Direito quer seja a realização do Direito ele mesmo.

5. - O objecto deste trabalho: Ciência prática e método.
O pensamento jurídico, como ciência prática, segue metodologicamente o movimento da própria formação e realização do Direito.
O juízo de valor jurídico, construído sobre a matéria dos interesses humanos concretos que se digladiam na sociedade real, nega esses interesses transmutando-os em ideia social, abstractizando-os e generalizando-os. A norma, por sua vez, nega o juízo realizando-o na vida material. Esta negação da negação é um regresso...progresso dialéctico pois a realização do Direito é uma tutela de interesses concretos mas no plano mais elevado da assimilação pela via genérica.
Como, porém, o juízo de valor não é pura ideia mas ideologia - existente na contingência da realidade histórica - a sua realização não pode impor-se com a força da necessidade, antes tem necessidade da força para se impor. Força que, para a classe que a actua, é uma exigência da própria existência - a classe existe quando objectiva a sua consciência de classe - e para a classe que a sofre é uma negação que exige ser superada - e é - por uma nova ideologia, a qual, no esforço de realizar-se, faz o movimento da história.
O jurista puro seria um instrumento da classe titular do Direito para a tarefa da sua realização formal (1) e também da sua realização material objectiva (2) - a realização subjectiva dos valores é moral-. No processo da formação do direito, ou seja da sua realização formal, caber-lhe-ia organizar os materiais: objectivar os juízos de valor sob a forma de proposições normativas, deduzindo; referi-los a matéria dos interesses que tipifica, induzindo.
No processo da realização material executaria operações análogas: «subir» do caso para a norma - subsumir -e «descer» da norma para o caso- interpretar; subida e descida que um mesmo processo comporta muitas vezes e que é, por isso, mais propriamente, um movimento de vai-vem. Porém nenhum destes processos lógicos permite, por si só, realizar o que quer que seja - são processos de conhecer e não de realizar.
Na verdade a ideia, sendo formada a partir da matéria


(1) É o papel do jurista
legislador.
(2) É o papel do jurista
juiz, do jurista advogado, etc.


em perpétuo movimento - e o devir da matéria social é particularmente fluído - não pode reflectir um ser que já não é no momento em que é pensado; reflecte antes um vir a ser, um tornar-se. Ora, se é certo que todo o tornar-se se nos apresenta, à posteriori, como determinado, à priori - e portanto na ideia - já assim não é, antes de mais porque toda a ideia é abstracção, mutilação da realidade material. Esta apresenta-se-nos pois como um vir a ser indeterminado, um feixe de probabilidades. Actuar é intervir para realizar uma das possibilidades de ser - é assim verdadeiro que todo o real é racional mas não é verdade que todo o racional seja real; venha a ser realizado. Desta maneira uma actividade, como é a prática jurídica, jamais se pode reduzir a qualquer forma de processo cognitivo dada a relativa indeterminação de todos os conceitos.
Assim o jurista puro é uma pura abstracção. O jurista real é ele mesmo homem, membro de uma sociedade e de uma classe e por isso chamado a constituir ele próprio o Direito nos limites da indeterminação dos conceitos com que trabalha. Daí a sua responsabilidade.

Geraldes de Carvalho
Do meu livro "Introdução ao método de aplicação científica do Direito"
Foi também a minha contribuição para o Congresso de Ciência Jurídica em Haia-1977

Quando ela me deixou. Assim, assim...7

Quando ela me deixou,
ou me pensou deixar,
deitou-me um longo olhar.
Olhar que eu recebi
estóico como o aço
mas que não devolvi.
Era um olhar estranho
intenso, magoado,
contendo a dor actual
e a dor do passado.
E nesse olhar eu vi-me
e nesse olhar eu vi-a
porque esse olhar trazia
a nossa vida
tal como ela a queria
ver,
talvez como ela era,
mas não como eu a sentia
ser.
Foi um olhar nostálgico,
um olhar do passado
que ela me fez presente
e que ficou mordendo aqui,
no coração da alma,
assim, assim...

E hoje não sei
se ainda a tenho,
ou não,
ao pé de mim.

Geraldes de Carvalho
de "24 ou 25 poemas de muito amor e pouca particularidade"

terça-feira, setembro 25, 2007

Dicionário...ou dois poemas num só

Tenebroso é o que apascenta 
as nuvens negras no céu.
Não é um Deus nem um Anjo,
é um demónio,
sou eu.
Não é o meu pensamento,
sou eu.
Não é o meu sentimento,
sou eu.
Não é o que sinto
neste momento,
sou eu.
Não é o que tento
ser,
sou eu.
Eu
eu
eu 
que não inspiro
e expiro
em chama,
a arder,
até não mais
eu ser;
não mais
tenebroso,
não mais.

Geraldes de Carvalho

E o que é que fica de mim (?) 
assim, assim...? 

Geraldes de Carvalho
de 25 ou 26 poemas de muito amor e quase nenhuma trivialidade

domingo, setembro 09, 2007

... a hora

Estou aqui
perdido em dor
nos labirintos do ser
do meu ser tão pequenino
mas infinito...

Aqui chega a vossa voz
tão deformada
pelas curvas do meu destino
que eu já não sei
se é uma voz
ou nada.

Só sei que sofro, e mói
esta dor,
talvez fingidamente
mas que dói, dói. 

Deuses em que eu não creio
valei-me agora
que eu estou nascendo
e morrendo,
...é a hora .

Geraldes de Carvalho

de 24 ou 25 poemas de muito amor e alguma circunstância

sexta-feira, agosto 24, 2007

Epitáfios

Hoje estou um pouco tétrico . Deixo por isso, aqui, um projecto para o meu Epitáfio.

Assim -com maiúsculas e tudo-:

AQUI VIVEU O GRANDE POETA GERALDES DE CARVALHO . TINHA UM METRO E SESSENTA E SEIS DE ALTURA E NÃO SABIA NADA DE NADA .

E aí vai também outro epitáfio que escrevi há muitos anos e coloquei agora no livro "Novos e velhos cantos"

Epitáfio para um herói 



Nada,
nem frio nem quente;
água, ferro, cálcio, fósforo, etc.
à temperatura ambiente;
mas dele, nada...
Aos poucos decompõe-se.
Cada elemento é o que é:
Os gases são gases
e se se movem, vento
-pai do som,
filho que as prenhes velas têm dentro -
Água é água
e se se move, rio
-ar de peixe,
rua de navio -
Sal é sal,
fogo que abrasa o mar
-nem toda a água do mundo
o poderá apagar -
O ferro é ferro,
cristaliza,
impurifica,
é purificado,
malhado,
moldado,
para carris,
para panelas,
para desenhar nas forjas
perfis de estrelas...
Eu sei lá, é ferro.
Quanto ao fósforo
ser indeciso,
amorfo,
assim...
Presa da combustão
-frio a querer ser clarão-
é fósforo, enfim.
Não terá muita aplicação
mas é importante
-não para ele,
para mim-
Mas dele, nada.

Geraldes de Carvalho

de "novos e velhos cantos " Évora o6 -este era dos velhos cantos

domingo, agosto 19, 2007

Pequena parte do meu novo romance : SORTILETEJO

Por essa altura o Mário costumava sonhar muito e recordava muito bem os sonhos que tinha, talvez porque tinha mau dormir e, assim, acordava muitas vezes logo depois de sonhar.
Eram sonhos bastante interessantes que ele gostava de recordar e que algumas, poucas, vezes contou aos amigos. Deixou porém de fazê-lo porque notava que eles não acreditavam que ele tivesse efectivamente sonhado com todos os pormenores de que se lembrava.
Recorda que uma das vezes um amigo comentou: Tens uma imaginação efectivamente prodigiosa, mas fê-lo com tal acento de admiração que o Mário não teve coragem de se zangar.
Deixou então de se interessar por esses sonhos, que por isso depressa esquecia e parecia-lhe mesmo que deixara de os sonhar.
Ultimamente, porém, os sonhos que deixara de ter transformaram-se pouco a pouco em pesadelos que na verdade se repetiam até à exaustão ainda que com ligeiras alterações...
Num deles antecipava o parto da Adélia . E havia duas coisas que o afligiam muito naquele sonho . Uma delas era que ele assistia ao parto dissimuladamente sem que a Adélia soubesse e desse por ele . A outra questão inquietante era que, por mais que tentasse, nunca conseguia ver a criança que nascia e ele dava-se a pensar, no meio do pesadelo, se ela seria realmente uma criança . Se não seria já um adulto, ou mesmo outra monstruosidade qualquer .
A Adélia, no sonho, parecia não sofrer nada com tudo aquilo. Ria-se mesmo. Umas risadas esganiçadas, a avaliar pelos esgares que fazia, o que não era nada dela. Pareciam de outra pessoa e, reparando bem, também ela não era ela, por vezes.
E este pesadelo nocturno transformava-se em pesadelo de dia pois não podia contá-lo a ninguém nem o esquecia porque quando isso estava prestes a acontecer voltava a sonhá-lo.
Outro pesadelo era bastante mais estranho porque não parecia ter nada a ver com as suas preocupações, no momento.
Via ele um homem que não reconhecia sabendo, embora, que era seu amigo, conduzindo um velho acorrentado que sabia ter sido condenado à morte. E ao mesmo tempo que sabia que o seu amigo – que, no entanto, não identificava - era obrigado, por dever...oficial, digamos assim, a conduzir aquele homem, não deixava de achar muito estranho que o fizesse pois sabia-o contrário a tal penalização.
Entretanto verificava-se uma altercação entre aquele par que ele contemplava a uma certa distância. Via então o seu amigo conduzir nervosamente o homem para o encostar a uma parede . Retira uma pistola do bolso e aproxima-lha agitadamente da têmpora. Não atira porém. Coloca-se ele próprio no muro, ao lado do homem acorrentado e encosta agora a pistola à sua própria têmpora.
O Mário não ouve o tiro – todos estes pesadelos são completamente mudos - nem vê cair o seu amigo porque acorda sufocado de angústia.

GERALDES DE CARVALHO

terça-feira, agosto 14, 2007

Como me perdi

Não suportei essa ideia 
que breve se desmoronou 
nos mil pequeninos factos
de que era feita
-e noutras mais 
pequenas coisas, 
que na ideia,
clandestinamente
se abrigaram-
e me mostrou 
como é que eu era
nem tão nobre 
nem tão belo 
como ela -a ideia-
era
ou parecia ser.
E parecia
por ser tão grande
que eu
não a podia
ver.
Dei-me a rearma-la por isso
sem os espúrios acrescentos
que ela não podia ter
nem teria.
Mas por fim
o que restou 
nem mesmo uma ideia era
mas um lixo que fedia
e afastava
quem se dela 
aproximava.

E foi assim que perdi
aquela bonita ideia
que era eu.

Aconchega-me 
por isso
minha mulher
minha amiga
minha irmã
e parente,
minha amada...

Se é que não és uma ideia
ou nada. 


geraldes de carvalho

de 25 ou 26 poemas de muito amor e muito pouca circunstância

domingo, agosto 12, 2007

Conversa de bêbado

Sem ti, meu co...companheiro tinto
eu não podia viver
porque tenho o coração... triste
e a alma a apodrecer !!!
desde que ela me deixou
ou..não sei se me deixou
ou apenas me deixar pensou
ou me pensou deixar
ou pensou me deixar...
ou deixar pensou me...
Sei que não sei se sou eu
ou quem sou.
Porque eu julgava, coração...
que era ela e -vírgula- por isso
sabia bem quem eu era
não me podia perder.
Até que um dia ela olhou
e esse olhar nos separou
e agora não tenho mão 
para poder distinguir
se sou eu
ou quem eu sou
ou não
Só sei que estou repetindo
como um bêbado
ideias que importei
talvez da bóblia...da bíblia, 
não sei,
só sei que quero um copinho
mas do tinto 
porque o branco...o branco 
não é vinho !!!...
Isto assim porque quem tem
tanta emoção, 
só funciona com muitos muitíssimos pontos
de exclamação !!!!!!!!!!!!
e algumas reticências... ... ...

Ou não?

geraldes de carvalho

de 24 ou 25 poemas de muito amor e muito pouca cir...circunstância

sexta-feira, agosto 10, 2007

C O R A G E M

ENCHA-SE DE CORAGEM . LEIA A PROSA. NÃO SOU ASSIM TÃO MAU

geraldes de carvalho

quarta-feira, agosto 01, 2007

Sem palavras-poema novo sobre raízes velhas




Fechei sobre os meus olhos 
e os meus ouvidos
com força, as minhas mãos
para que nem uma sensação
cruzasse o prenhe rio
do meu humano pensamento puro.
Com força fechei as minhas mãos
e me concentrei 
até eu já não ter mãos 
nem olhos nem ouvidos.
Então vieram até mim, 
não invocadas,
todas as virtualidades do ser
que algum dia merecerá o nome de homem.
Vieram e escreveram 
sem palavras,
estas palavras
que vos traduzi como pude:

SIM foi a única palavra que aproveitámos
do léxico abstracto dos nossos antepassados
mas concretizou-se.
Apesar disso subsiste a diversidade
e não é o tédio o nosso estado
mas uma perene e perfeita harmonia.

Geraldes de Carvalho

1  (de 24 ou 25 poemas) de imensa circunstância e muito pouco amor.

domingo, julho 29, 2007




Vou publicar aqui o 1º capítulo e parte do 2º do meu livro "O caminho" . Estes textos já tinham sido publicados mas geralmente como imagens o que tornava um pouco difícil a sua leitura Consegui agora o OCR para o meu MAC e por isso já posso publicar os textos como...textos. Apaguei as imagens mas conservei os comentários.




PRIMEIRO CAPÍTULO



Feitos de nada. para nada idos.
Revestidos de nada caminhamos
Caminhar é que é ser, em todos os sentidos;
Só andando é que estamos.








I. Caminhava e caminhava indefinidamente.
Devo dizer, em abono da verdade, que caminhava bem. É certo que ao princípio, me limitava, como os outros, a avançar sem curar de conhecer as regras e os métodos. Tal sistema, se a isto se pode chamar sistema, dava fracos resultados. Não é, evidentemente, apoiando todo o corpo sobre o solo e avançando, ao acaso, mãos e pés, procurando firmar-se ou agarrar, que conseguimos progredir. O que se consegue, às vezes, são espinhos pelo corpo e pedaços de terra nos olhos e na boca. Por isso eu costumo dizer que foi mais pelos inconvenientes de tal sistema - supondo que é permitido dar-lhe esse nome- do que pelas vantagens que o novo me oferecia, que, pouco a pouco, me decidi a abandoná-lo.

2. Mas poderei eu dizer que o abandonei?
Não será por acaso verdade que desde o princípio fiz todos os esforços para me libertar dos espinhos e da terra, esquivando como podia o corpo os olhos e a boca? Que era pois o meu novo sistema, senão uma forma aperfeiçoada do anterior? Não é certo que muito caminhei ainda ao acaso, tendo apenas o cuidado de manter acima do solo, meu corpo, meus olhos e minha boca?

3. Desde quando soube eu realmente, aonde punha as mãos e os pés? Desde quando soube que devia avançar simultaneamente a mão direita e o pé esquerdo, e que bem apoiado nos quatro membros, devia então, com um único impulso do corpo contendido, impulso que me elevava ligeiramente, inverter a posição enquanto expirava? E que devia inspirar em repouso momentâneo, relaxando o corpo e deixando os membros flectir-se até ao ponto de dar a impressão que recuava, a tomar alento para o movimento seguinte?
Desde quando?

4. Para sabê-lo, seria preciso que eu tivesse a faculdade de parar para pensar ou pudesse olhar para trás. Nada disso me era permitido nem o desejava. Sabia, e bastava-me, que caminhava e caminhava bem. Embora não me pudesse ver, sentia que o meu corpo avançava ondulando ritmicamente, e a graciosidade deste movimento de modo algum me deixava indiferente; enchia-me de orgulho. Por vezes dava por mim a lamentar que não tivesse cauda; percorri longas distâncias imaginando como coordenaria então os movimentos; via-a caída no momento do salto, inclinada à esquerda quando o pé direito estivesse recuado e vice-versa. Percorri longas distâncias enlevado no pensamento inconsentido deste secreto desejo.

5. Pois em que poderia eu pensar? Empregava todo o corpo aproveitando ao máximo a capacidade de cada uma das partes; como aspirar a qualquer aperfeiçoamento senão imaginando-me diferente e mais complexo?

6. Entretanto avançava, e posso dizer que avançava rapidamente. Não que eu perdesse o
meu tempo a procurar um ponto de referência na monotonia do caminho, mas bem via como os outros ficavam para trás, arrastando-se miseravelmente na terra e nos espinhos. Poderei descrever a alegria que me dava a constatação deste facto? Oh ! Como eu ia ligeiro e leve, deixando a perder de vista os que comigo haviam partido, e ultrapassando facilmente os que tinham saído mais cedo e mais cedo! ...

7. Deverei deter-me agora para contar como evitava tocá-los pois me produziam uma sensação de indizível repugnância'? E deverei dizer que nem sempre me era fácil deixar de passar por cima daqueles que mais directamente encontrava no meu caminho'? Não, não creio que tal relato possa despertar o mínimo interesse.

8. Talvez que se a meu lado alguém caminhasse como eu, ligeiro e leve, me sentisse tentado a estender-lhe amigavelmente um membro, ou talvez não. Muitas vezes me tinha feito esta pergunta:
Caminho só porque caminho assim, ou caminho assim, porque caminho só ?

9. Mentiria se dissesse que procurava resposta para esta ou qualquer outra das minhas muitas
interrogações.
Por exemplo:
Não seria certamente descabido que eu dissesse agora para onde caminhava; mas como, se eu próprio o não sabia? No entanto eu tinha uma boa razão para prosseguir por ali: Olhai a gota de água numa corrente caudalosa; será possível vê-la correr para montante ou mesmo imaginar-lhe semelhante desejo?

10. Não admira pois que eu não procurasse resposta para as minhas interrogações, e que estas fossem apenas uma espécie de jogo, com que procurava distrair-me de obsessões como
o desejo da cauda.

11. Mas poderão evitar-se as respostas quando se encontram atravessadas no nosso caminho? É preciso, porém, não exagerar. Poderá chamar-se realmente uma resposta àquilo que como tal se considerou, ainda que durante muito tempo? Poderei eu mesmo falar em respostas, se sempre caminhei ? - Esta é a verdade, diga eu o que disser, venha eu a dizer o que vier.

12. Mas vale mais que eu conte de uma vez o
que vi ou aonde cheguei e não fique aqui, como quem diz, às voltas sobre uma coisa de nada, atitude inconveniente, por certo, para quem como eu caminhava realmente numa direcção bem definida.

13. Antes porém, gostaria ainda de fazer uma pergunta: Será que poderei dizer que cheguei àquela cidade, ou mesmo que era uma cidade, só porque em determinado momento me dei conta de que os outros iam e vinham e se juntavam e dispersavam para se reagrupar de novo em grupos que ora se fraccionavam ora se fundiam para novamente se dispersar'? E outra: não estarei eu com palavras, procurando esconder o que quero dizer, o que devo dizer, o que não posso calar, o que realmente é importante, o que aconteceu de facto; enfim não estarei propositadamente a retardar, a protelar o momento em que terei de e serei obrigado a, sob pena de não poder prosseguir, revelar que estas pessoas avançavam mas avançavam mais lestas, mais gráceis, mais elegantes e mais ligeiras e leves do que eu ? Como poderia humilhar-me tanto, que dissesse sem rodeios, que aquela gente inconcebível conseguia caminhar assim, utilizando apenas os pés e reservando as mãos para conseguir uma série de efeitos surpreendentes e outras mirabolantes distracções. Oh ! Como os invejei e como os amei, porque me pareciam grandes e belos e porque iam depressa! Não que me tivesse imediatamente apercebido que o defeito estava na maneira de caminhar, não; procurei até aperfeiçoá-la; consegui músculos mais tensos, inspirações mais profundas, movimentos mais alongados, corpo mais maleável; mas logo reparei que tudo o que se passava ali, àquela altura do solo, estava praticamente fora do alcance de visão dos habitantes da cidade. Enquanto eu saltava e cabriolava no ar, eles passavam ao meu lado, à minha frente, sobre mim, longe de mim.




SEGUNDO CAPÍTULO


Alegro-me porque poderei agora vingar-me da humilhação relatada na última parte do pequeno capítulo anterior, contando como consegui pôr-me de pé:

1. Aconteceu que por acinte ou acaso alguém passou verdadeiramente junto de mim. Ferrei-lhe os dentes; Tentou sacudir-me batendo nervosamente com a perna enquanto caminhava, mas não o larguei. Parecia não me dar muita atenção. De quando em vez batia com mais força a perna no chão, e eu segurava-me. Numa segunda investida lancei-lhe as mãos. Desta vez, com os movimentos mais presos, parou para considerar; agarrei-o melhor. Pareceu decidido a livrar-se definitivamente de mim - tê-lo-ia conseguido pois dificilmente me equilibrava naquela crítica posição - desistiu porém deste intento e, inexplicavelmente, agarrou-me pelos cabelos e pôs-me de pé. Beijei-lhe as mãos.

2. Continuámos juntos.

3. Pouco a pouco adquiri maior segurança quer em manter o equilíbrio, quer na maneira de pisar. Constatei então que até ali andara errado - conquanto no único caminho, permita-se-me este pequeno paradoxo. A sabedoria não estava em aproveitar ao máximo as possibilidades de cada uma das partes do corpo e concentrá-las num esforço comum, mas em dar a cada uma o seu emprego mais adequado: as pernas e os pés para andar, as mãos para agarrar, e a espinha dorsal para dobrar usando todas as imensas virtualidades da sua maravilhosa articulação.

4. Tanto me aperfeiçoei que não tardei a verificar que não era já eu que me apoiava ao meu companheiro, mas ele que se apoiava em mim. Sendo assim era evidente que eu estava a avançar menos do que as minhas possibilidades me permitiam. Sacudi-o com facilidade.

5. Entretanto cheguei a uma das praças da cidade. Ali fiz um discurso, um discurso histórico ou mais precisamente, da história da minha vida. Comecei: Caminhava e caminhava indefinidamente - uma frase de lindo efeito - e continuei por ali adiante, omitindo apenas alguns pormenores de somenos importância.

6. Ninguém me ouviu como é costume, mas depois dos aplausos um velhinho aproximou-se e disse: Não tem razão, ao que respondi:
Evidentemente que não tenho, espero não ter afirmado o contrário. E ele: Alegra-me que saiba reconhecer um bom argumento. E assim nos tornamos amigos. Disse-me que tinha uma filha encantadora e convidou-me a conhecê-la.

7. Acompanhei-o a casa. Não quero faltar à verdade dizendo que fui com ele, e a própria palavra acompanhar necessitaria uma árdua exploração. Ainda julguei que talvez pudesse dizer que o segui, mas logo vi quanto andaria longe da verdade; pior seria se dissesse que fui seguido por ele. Bem, tudo se resume a pouco mais do que termos partido e chegado ao mesmo tempo, com breves e ocasionais contactos pelo caminho que ele aproveitava para me impingir, por sua vez, o seu discurso. Isto não significa que eu não tivesse tentado regular o meu passo pelo dele, observando-lhe minuciosamente todos os movimentos:

8. Avançava com passo miudinho e levantava o
pé preso ao que me parecia de preguiça tão irremediável, que era para suspeitar que não chegasse a pousá-lo, o que distraindo-me, me impedia de ver como o pousava realmente. Iludido por este pormenor, não admira que retraído, me deixasse ficar para trás ou que
reagindo, em vez de agir como devia, me lançasse numa cega perseguição ultrapassando-o sem vontade nem remédio. Mas o pior ainda é que como não sabia o caminho era então obrigado a parar, o que significava perder toda a vantagem adquirida e permitir-lhe que, alcançando-me, me despejasse nos ouvidos um parágrafo inteiro da sua oração.

9. E repetia-se este processo de retracção, reacção e paragem, enquanto me esforçava por surpreender o momento decisivo, em que ele pousava o pé, e assim desvendar o segredo daquela forma de caminhar. No entanto era bem claro que jamais o conseguiria enquanto não acreditasse que tal momento ocorria realmente. Que cegada !

10. À falta de melhor, dei-me a elaborar uma hipótese:
Creio já ter dado a entender que no difícil processo de caminhar, sempre cercara de especial cuidado e ponderação o acto de pousar os pés - ou as mãos -. Atira-se um membro para o ar sem medo e com alegria, mas é sempre mais difícil recolocá-lo no chão. Como poderemos saber o que iremos encontrar debaixo? Os perigos disfarçam-se sob a poeira do caminho e alguém que pisemos é bem capaz de nos ferrar à traição e sem dó, numa perna, os dentes agressivos. Jamais os que são sempre calcados se resignam à sua natural condição e uma vez ou outra, há um que nos faz lamentar amargamente qualquer descuido.
Tal pois foi a hipótese que a respeito do andar do velho elaborei: Por qualquer estranha razão ele pisava sem temor, como se estivesse seguro de ter o caminho limpo de obstáculos. E tal foi
o que cheguei a descobrir, confirmando a minha suspeita: Que servos devidamente ferrados o precediam por onde quer que fosse, reduzindo todo o caminho, ao mesmo pó uniforme e macio que ele gostava de pisar. Gostei daquela sabida técnica e eu mesmo a vim a aplicar, oportunamente, com assinalado êxito.

11. Enquanto pensava nisto e naquilo o velhinho estacou e eu, que iniciara então uma vigorosa perseguição, parei também, mas, é claro, não a tempo de ficar junto dele. Voltei-me surpreendido para saber que força poderia assim ter detido quem caminhava com tanta - diria bem, tão sábia - determinação. A causa de tamanho efeito era uma personagem aparecida.

12. Não perderei, por ora, tempo a descrevê-la. Gosto de descrever as pessoas pela forma como caminham - e julgo desnecessário explicar o porquê ? - e, por enquanto, sobre aquela forma de caminhar, tinha só uma indirecta indicação: não a pressentira chegar. Se vim depois a saber o motivo, não deverei revelá-lo agora para não ser acusado de usar precipitar-me sobre os meus próprios passos, defeito grave para quem, concretamente, pretenda avançar.

13. Recuei - que não se tome demasiado à letra esta palavra - a tempo de assistir a uma representação interessante : o velho estacara, mas ou fosse pela posição do corpo ou pela subcutânea palpitação muscular, adivinhava-se que continuava preso - como direi ? - por um fio, ao movimento.

14. Outro tanto acontecia com ela, a quem um impulso contido parecia dever arrastar dali para muito longe, de um momento para outro. Todavia nenhum deles conseguia avançar, porque animados de energia contrária na direcção, mutuamente se anulavam os efeitos; ou seja em termos mais correctos: cada um puxava para seu lado. Mas inadvertidos como estavam do equilíbrio das respectivas forças, nela por serem mais violentas e nele porque mais eficazmente comandadas, ambos se esforçavam por arrastar o outro consigo - o que não era senão uma forma de evitar ser arrastado - dando-se mútuas marradinhas na cabeça que procuravam, suponho, provocar-se pequenas libertações de energia ou uma espécie de relaxamento nervoso e assim, mais pela persuasão do que pela violência declarada, enfraquecer-se.

15. Esta técnica favorecia visivelmente o meu velhinho, a quem a perda de energia não afectava, excepto se viesse a descer abaixo do ponto crítico em que se tornasse inoperante qualquer utilização, por mais criteriosa que fosse.

16. Perante o momentâneo impasse é que eu intervim, a convite do velho, e com um subtil toque da minha mão na dela, decidi o prélio a nosso favor -o meu, o do leitor e o do velhinho

17. Passou então a gravitar à nossa volta como um satélite, o que é uma forma de dizer não muito distante da verdade. Mas o seu peso - dela - contrabalançando a minha indisciplinada energia, permitia-me agora acompanhá-los com satisfatória facilidade. E foi assim que chegámos, por milagre juntos, a casa deles, e ali nos dispersámos, pouco, por aqui e por ali.

18. Seria talvez agora altura de descrevê-la, porque já devia ter do seu andar alguma observação. Mas não tinha. Embora lhe sentisse muito impressivamente a constante presença, por alguma difícil razão, só vagamente a via. Matutando sobre o caso acabei por concluir que o que ma encobria era a própria proximidade. Eu explico: a força da sua atracção obrigava-me a reproduzir-lhe quase textualmente os movimentos e assim nunca me encontrava bastante distanciado para poder apreendê-la completamente. Aí está! Não obstante eram-me bem visíveis certas particularidades, o que, claro, pouco adianta para quem deseja saber sobre a forma de caminhar.

19. É certo que eu poderia subtrair-me-lhe voltando-lhe as costas. Mas pouco tempo permaneceria nessa posição, fosse pela instante necessidade de completar a observação das particularidades vistas ou, porque não confessá-lo?, pela atracção que aquela atracção sobre mim exercia.

20. Foi assim que me encontrei a executar uma série de movimentos incontroláveis, mas caracterizados pela riqueza rítmica de uma variada simetria, resultado simples, como vim a saber, de sermos dois a executá-los, sem que eu, então, disso me apercebesse.

21. O que com ela se passava de semelhante era diferente porque não movida por qualquer acção que sobre ela se exercesse mas por uma vontade má de exercê-la e uma secreta consciência de que só poderia consegui-lo se me mantivesse na ignorância dos seus processos; é simples! Por isso se me voltava e me afastava, se voltava e se afastava sabendo que não tardaria a segui-la para que me fugisse e me apanhasse.

22. Entretido como estava neste minucioso jogo, nem me apercebi de como os nossos movimentos se repetiam em ritmo que gradual e perigosamente se acelerava ...

23. Seria necessário que eu repetisse agora a descrição dos movimentos que melhor exprimem esta fase das nossas relações, para dar delas uma ideia mais perfeita, e voltasse a repetir antes de continuar. Veremos se aconselharei ao editor uma cópia e recopia sucessivas deste trecho da minha caminhada. Entretanto, antes que o termine, convém dizer que nem por um momento deixei de prosseguir - faço questão em insistir neste ponto. Fui até levado a assistir à lição pública de ginástica.

24. Começava na posição de pé concentrado e quieto alguns instantes compridos; a um sinal do instrutor avançávamos a perna esquerda ligeiramente (I." tempo); depois recuávamos a perna direita assentando apenas o bico do pé e nessa posição flectíamos ambas as pernas até ficar com o joelho direito assente no chão (2." tempo); por fim, num só movimento, o mais difícil, colocávamos o joelho esquerdo ao lado do direito (3." tempo), tendo o maior cuidado em não levar as mãos ao chão o que comprometeria a nobreza do exercício. Devíamos permanecer a maior parte do tempo nessa posição, mas o exercício repetia-se quatro ou cinco vezes. A instrutora - instrutora tanto quanto as vestes amplas permitiam distinguir - dirigia o exercício por gestos e palavras que só uma meia dúzia de privilegiados entendia; os outros limitavam-se a imitá-los. Simultaneamente ia comendo e bebendo, para poupar tempo, suponho. Era bastante frugal conquanto abastada a avaliar pela sumptuosidade da baixela a qual devia ter herdado dos antepassados, pois era de fino lavor como se costuma dizer.

25. A lição de ginástica permitiu-me conhecer muitas pessoas e fazer bons negócios. Aproveitava também os assistentes para ouvintes dos meus discursos, ou antes do discurso que eu teimava em repetir e aperfeiçoar e burilar tendo conseguido obter uma agradável variedade pela maneira como começava. ora no princípio, ora no meio da narrativa e mesmo no fim, fazendo múltiplas regressões ou adiantando-me de propósito à sequência dos factos para me permitir regressar de novo. Obtinha assim uma dicção rítmica e ondulante que me recordava o tempo em que trotava alegre e só, pelo caminho que ali me tinha trazido.

26. Tão rico de ensinamentos sobre a forma de caminhar, remédio para todas as aflições, solução para todos os problemas, o discurso guindou-me rapidamente ao primeiro lugar entre os meus concidadãos. Só eu tinha agora o privilégio e o direito de discursar na praça principal!

27. Este privilégio, criava-me no entanto alguns deveres que eu cumpria, digamos para não fugir à regra, gostosamente. Entre todos, a minha predilecção ia para as visitas de cortesia. E não irei adiante sem me referir muito secretamente à que fiz ao secreto Instituto de Pesquisas Científicas :